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Entrevista: A Politização da Polícia no Brasil

Homem segura duas grandes armas de papelão
Homem segura duas grandes placas de papelão enquanto compartilha revólveres em manifestação pró-armas em apoio ao presidente brasileiro Jair Bolsonaro, em Brasília, em 9 de julho de 2021. © Sergio Lima / AFP / Getty

Vinte anos atrás, o Brasil, então uma das maiores democracias emergentes do mundo, sofreu um aumento vertiginoso da violência armada. O fenômeno levou a um enorme movimento de protestos por segurança em todo o país, que acabou sendo o principal impulsionador do Instituto Sou da Paz, uma organização sem fins lucrativos especializada em pesquisa na área de segurança pública. Hoje, o Sou da Paz é um think tank nacional que sensibiliza a população através de vigílias e manifestações de rua, mídias sociais, lobby junto a órgãos do governo e parcerias com outros grupos nacionais com perspectivas parecidas para coletar dados sobre questões de segurança. 

Desde que assumiu o poder em 2019, Jair Bolsonaro promulgou uma série de medidas provisórias destinadas a aumentar o acesso da população a armas de fogo, justificando as medidas com o argumento de que uma sociedade bem armada é uma sociedade mais segura. Conforme revelado pelo trabalho de pesquisa do Sou da Paz, as vendas de armas de fogo aumentaram 23,6% nos primeiros seis meses de 2021. O número total de armas vendidas no período foi maior que o dos dois anos anteriores juntos. A Open Society conversou com o coordenador do Sou da Paz, Felippe Angeli, sobre suas preocupações ao ver estas tendências se alinhando com as tentativas de Bolsonaro de desobedecer a Constituição do país e cooptar as forças policiais em sua cruzada para permanecer no poder.

Você poderia dar um breve histórico de como a politização das forças policiais tem evoluído e como está ressurgindo no país?

O Brasil tem uma tradição democrática conturbada. O país se tornou uma república através de um golpe militar em 1889, que expulsou a realeza brasileira instalada aqui por colonos portugueses. Tivemos golpes em 1891, 1930 e 1937; um fracassado em 1955; e depois um que levou a uma ditadura militar que durou desde 1964 até meados dos anos 80. O Brasil elegeu um presidente civil em 1985, mas apenas em 1988 se promulgou uma nova Constituição para promover o Estado de Direito. Temos visto sinais preocupantes de deterioração desde 2013. Foi neste ano que protestos em toda a cidade de São Paulo por causa de um aumento na passagem do transporte público rapidamente se transformou em manifestações generalizadas em todo o país.

Em 2011, a Presidente Dilma Rousseff sancionou uma lei criando a Comissão Nacional da Verdade para investigar abusos de direitos humanos, especialmente aqueles cometidos durante o regime militar. Em 31 de agosto de 2016, ela sofreu impeachment pelo Senado sob acusações controversas de fraude no sistema de contas pública e, como resultado, perdeu seu mandato. Embora os militares não estejam autorizados a comentar sobre política, alguns membros do alto escalão apoiaram publicamente o impeachment da presidente.

O Sou da Paz acredita que o país tem também uma tradição sociopolítica que poderia ser chamada de policialismo. Em 1932, a polícia do Estado de São Paulo liderou uma revolução para derrubar o regime autoritário do então presidente Getúlio Vargas, que chegou ao poder dois anos antes em um golpe de estado. Nos anos 60 e 70, as polícias militares se tornaram um instrumento de repressão do regime militar. Hoje, o que estamos vendo é a cultura pop e as mídias sociais sendo usadas para legitimar a influência da polícia na política. 

O número de deputados policiais ou militares eleitos saltou de quatro nas eleições de 2010 para 42 nas eleições de 2018, representando um aumento de 950%. E em 2020, verificamos que as candidaturas de policiais e militares para prefeito aumentaram 129% e para vice-prefeito, 106% em relação à eleição anterior.

Como vocês medem a influência da cultura pop e das mídias sociais? 

Um estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública constatou que 27% dos policiais brasileiros interagiram com conteúdo antidemocrático nas mídias sociais, contra apenas 17% do total da população brasileira. Ao mesmo tempo, uma pesquisa realizada pela Mídia Sem Violações de Direitos, uma campanha da organização de direitos humanos Intervozes, mostra que os programas de "crime real", que muitas vezes apresentam na TV os crimes mais hediondos, ocupam horários nobres da televisão nacional. A produção desses programas geralmente faz rondas junto com a própria polícia. Também é comum filmarem jovens menores de idade acusados de crime, o que é ilegal no Brasil. Esses programas são extremamente populares junto às massas, que estão preocupadas com a criminalidade – o que é algo perfeitamente compreensível.

O Brasil teve 50.033 homicídios em 2020, o que se traduz em 23,6 homicídios por 100.000 pessoas, e 76% das vítimas são negras.

O popular documentário da Netflix Bandidos na TV mostra um exemplo horrível de como essas coisas funcionam, retratando uma parceria corrupta entre a mídia e as forças policiais em Manaus. A Intervozes também encontrou casos em que suspeitos foram enquadrados em crimes que não cometeram para aparecer nesses programas, e policiais que deveriam estar registrando suas operações para fins de prestação de contas muitas vezes estavam gravando prisões sensacionalistas, tornando essas pessoas influencers nas mídias sociais e facilitando sua entrada nas campanhas políticas. Como a grande maioria da população brasileira tem acesso à internet e às mídias sociais, todas as partes envolvidas ganham dinheiro com a publicidade.

Que paralelos você vê com outros países da região? 

O ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, é um grande exemplo. Um magnata do ramo imobiliário e estrela de reality show usou sua conta no Twitter para promover uma imagem de si mesmo como aspirante a caudilho. Ao assumir o cargo em 2017, ele tentou agradar os militares, aumentando os gastos de defesa do país e trazendo uma série de oficiais da reserva para o seu governo. No caso dele, não deu muito certo porque acabou despedindo todos eles. Depois, no final de seu mandato, ele incentivou civis que estavam descontentes com a vitória do Presidente Joe Biden nas eleições de 2020 a invadir o Capitólio, deixando vários [21] policiais mortos e dezenas gravemente feridos por tentarem defender a instituição democrática mais sagrada da nação. 

Além das claras semelhanças entre Bolsonaro e Trump – fake news, reminiscências de uma visão de mundo ocidental cristão, claro apoio a uma agenda de interesses nacionais em primeiro lugar, antiterrorismo e antiglobalização – os dois também são muito próximos. Um dos principais protagonistas é o conselheiro político de Trump, Steve Bannon. Seu grupo populista, The Movement, tem assessorado líderes internacionais, inclusive Bolsonaro. Essa atividade internacional da ultradireita contradiz a posição de anti-intervencionista nos assuntos globais. 

O que te dá esperança nos esforços do Sou da Paz? 

Eu cresci na democracia brasileira e nunca vi uma ameaça tão sombria como a que estamos vendo agora, mas tenho esperança porque o Sou da Paz continua a construir legitimidade. Temos 29.000 seguidores no Instagram, 263.000 no Twitter e 419.000 no Facebook, pessoas que usam esses canais para obter informações, participar de discussões online e se engajar civicamente com suas comunidades e autoridades eleitas.

Instituto Sou da Paz tem o apoio da Open Society Foundations.

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